quinta-feira, 9 de agosto de 2007

- E vocês não são putas?

Eis que estava eu na parada de ônibus, com uma amiga minha, e apareceu-me o pivete. Nunca uma indagação tinha sido a causa de tanto espanto e constrangimento. Os olhos saltaram das órbitas. Eu quis falar, mas quem o fez foi ela:

- Nãummmm. E a gente tem cara? – Falou como se fosse um miado arrastado.

Este questionamento provocou-me sensação pior do que o feito pelo moleque. Havia dúvida se nós parecíamos com putas? Como assim? Ela estava em seus dias mais comportados e eu com blusa sem decote e as sandálias sem salto. Só se minha calça jeans estivesse apertada demais. No entanto, dentro do meu estilo, eu tava tão arrumadinha, o batom da boca tão discretinho...
A coerção social caiu em mim como uma burca. De onde uma criatura, que aparentava ter menos de dez anos de existência, havia tirado que eu poderia ser uma daquelas mulheres da vida? Que absurdo! Aquilo não é coisa de menina séria e menina que aparenta ser aquilo é malvista. Decerto que é muito feio vender prazeres na esquina. Não sei explicar bem, mas todo mundo sabe que é feio. Se ao menos fosse homem, o aluguel para as heteros só apareceria nos jornais e não nas ruas. Mulheres que fazem isso (têm as ruas como vitrine) ou não prestam ou têm família que possui baixa renda, coitadas! Moça decente jamais se prestaria a este papel. Expor-se ao relento é para as dignas (apenas de pena) e para as libertinas! Pois, que mulher de família escolheria uma profissão dessas? As decentes só vendem prazeres (e os recebem também) escondidas. E ninguém pode desconfiar. É preciso manter a classe acima de tudo. E mal o pensamento teve início, foi dissipado tal como bolha de sabão na hora em que o piá, parecendo não se importar com a negação da minha amiga à sua pergunta, prosseguiu:

- Se vocês quiserem, eu arranjo dois gringos e vocês vão de táxi, mas eu tenho que receber a minha parte.

TÓIMMMMMMMMMM (meus olhos devem ter saído das órbitas de novo)

E eu que pensava que sempre teria uma resposta na ponta da língua...
Acaso o pivete não tinha acreditado que não éramos putas?

A noite encontra seus fiéis parceiros em quem não tem medo dela. Os meninos das ruas, os boêmios, as putas, os jogadores, são seus donos. A noite é do deboche. Deboche da crença, da falta dela. Deboche das famílias horrorizadas, dos que pensam ser o que não são e dos que são o que os outros não pensam. O ônibus chegou. Eu voltaria ao amargo lar e deixaria a noite daquela rua. Meninas de família só podem olhar as estrelas antes da novela das oito. Depois disso, podem encontrar algum mirim, ser confundidas com uma qualquer e ter um choque de realidade...

5 comentários:

Leandro Costa disse...

Uia, queria ter visto essa =}

Patricia M. disse...

As ações mais naturais são as mais culturalizadas. Já pensou em quanta parafernália e regra de etiqueta a gente usa pra comer? e pra dormir? ir ao banheiro, então, é um ritual consagrado.
O que dizer do sexo, no qual tudo é permitido (dizem), mas é geralmente confinado entre quatro paredes?
Vejamos que existe lugar pra puta, horário pra puta e cara de puta.
Assim como existe lugar onde a menina "direita" não deve estar, especialmente depois de certa hora.
"A noite encontra seus fiéis parceiros em quem não tem medo dela". Sim,a noite é o não-lugar, como diriam alguns filósofos. Ela só existe plenamente pra quem ,por necessidade ou teimosia, ignora hora e lugar.

Sávio Mota disse...

A noite é um aviso do mundo sobre os homens (não uma ameaça) que assim diz: "Eis o mistério de tudo! Estar e ser em algo escuro e ainda estar e ser no mesmo mundo". A escuridão se abatia sobre as terras e depois saía também sob um espetáculo de beleza; o renascimento da vida, da claridade e da razão. Em virtude disso, muitas culturas aprenderam a cultuá-la, em respeito ao poder nunca desprezível da natureza.

Nossa cultura, ao contrário, aprendeu a endemonizá-la. Não com daimon livre, mas com o adversário, Satanás. Foram criminalizadas as práticas em seu culto, condenadas ao rótulo de bruxaria e ao tratamento correspondente. Os animais noturnos, principalmente, foram apontados como bastardos querubins rebaixados. Aprendemos a temer ainda mais seus urros e olhos.

No interior das vilas, dentro das casas, olhar para um rosto banhado em sangue de um corpo pregado em uma cruz tornou-se muito mais tranqüilizante.

Patricia M. disse...

=O

sem palavras pro comentário do Sávio!

Síria Mapurunga disse...

É, Dona Alice... A vida nos faz tanta surpresas que até a gente se assusta!
História boa pra fazer refletir!