sexta-feira, 20 de julho de 2007

Papel, carne e concreto

De que é feito o ser humano hoje!?

O Senhor Marco Aurélio García, um dos grandes coordenadores do PT e assessor especial do presidente, protagonizou nesta semana, junto com um colega de gabinete, uma das mais tristes e revoltantes cenas dos últimos tempos. Ao saberem da possibilidade de o acidente com o vôo TAM 3504 em Congonhas ter sido provocado por falha mecânica, ambos fizeram gestos obscenos fora de tempo, desafortunados, flagrados por uma câmera oculta da Rede Globo. A cena foi veiculada por todo o Brasil através das mais diversas emissoras televisivas; impressa em jornais, exposta na internet. Em reação, a indignação popular é, certamente, muito grande: se não motiva uma revolta de protestos mais acintosos contra as autoridades, é porque existe uma catarse muito maior que a impede.

Porém, se engana quem acha que a catarse é de agora. A inanimação do cidadão brasileiro quanto a suas autoridades data de tempos imemoriais. Para não irmos longe, podemos lembrar o uso político da vinda de Bento XVI, quando deputados e senadores aproveitaram a distração cristã da maioria para multiplicar seus salários (coisa que dois meses antes provocou grande mal-estar - mas não reação! - popular). Ou as contas e histórias absurdas por trás dos Jogos Panamericanos do Rio; elas provocam algum alarde!? Em nenhuma dessas ocasiões houve qualquer reação política ou popular. Foi há quase cem anos que o baiano Rui Barbosa afirmou: "De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto." As coisas não parecem ter mudado muito em tanto tempo!

Se engana, também, quem acha que foi o gesto dos assessores o verdadeiro estopim moral em relação ao maior acidente aéreo brasileiro. Desde que surgiram as primeiras informações, certamente muitos outros políticos, de governo e oposição, tiveram reações íntimas ou explícitas tão ou mais graves do que esta. Desde muito cedo se fez com os números de vítimas politicagem e discurso ideológico inflamado. Deputados e senadores em CPI foram os primeiros a levantar a voz nesse tom, para fazer valer a oportuna evidência que as comissões promovem. Não ficou de fora a Comissão de Ética do Senado... e tudo vai ganhando um contorno meramente político... não houve um mínimo de respeito ou comedição que a ocaisão demanda.

Nessa encruzilhada moral e cultural, o pior foi mesmo o comportamento da mídia. Ao invés de servir utilmente à sociedade (ou ao menos de se conter em não prejudicá-la), foi capitaneada pela Rede Globo neste que é um dos mais vergonhosos episódios da mídia brasileira: sua postura grotesca e covarde (no mínimo) em explorar um assunto tão mesquinho num momento de tanta dificuldade para o país e, em especial, aos parentes das vítimas!? Imagino que, mais do que indignação política, essas pessoas sentiram profunda dor moral, absolutamente desnecessária e evitável pela imprensa. A postura do cinegrafista e dos seus superiores foi ridícula, covarde, abominável; não para com os assessores da presidência, mas com a população brasileira e com a ética dos homens.

O que se pode chamar de "natureza humana"? Qual grande transformação bioquímica tem ocorrido para sermos quem somos ou, mais precisamente, o que somos!?

Feito, do pó, pele, carne e osso, o ser humano hoje parece transvirado, como feito de papel, carne e concreto. Sobrou alguma coisa de natural, até aqui... mas já por fora (e preocupa-me se também por dentro, no mais íntimo rincão de alma) parece algo bruto e sem sentido.

4 comentários:

Gustavo de Negreiros disse...

Sávio,

Um sentimento estranho passa pela cabeça dos brasileiros nesse instante. Não sabemos se rimos a medalha do handebol ou se choramos a dor dos que perderam entes queridos nesse acidente.

Um sentimento mórbido de prazer com a morte se incorpora no cotidiano. Não que isso seja novidade. Mas, é triste, para não dizer trágica, a maneira como esse acidente está sendo coberto pelos nossos colegas.

Alguns devem estar pensando: "Ah.. então a imprensa deve deixar de noticiar tamanho acontecimento?". Não. O problema é o modo como o trabalho é feito. A todo momento, assistimos não a um terrível acidente, mas a um show pirotécnico, com pitadas de tragédia.

Os acontecimentos são tratados como novelas. A notícia não é mais notícia. É apenas mais um capítulo da trama violenta dos nossos jornais.

Assim, caro colega, fica difícil de nós cidadãos, instruídos ou não, destacarmos o que é realidade ou ficção. E é nessa dúvida cruel que perdemos a sensibilidade e a capacidade de reagir.

Enfim, estamos narcotizados.

Patricia M. disse...

"Os jornais não informam mais
E as imagens nunca são tão claras
Como a vida" O Rappa.

Mascara-se a realidade. A ela, é imposta a máscara da comédia e/ou da tragédia, conforme convém aos que são responsáveis por mostrá-la ao mundo. Sim, a mídia.

A dica do filme mais batido de todos, mas ainda válido: "Brasil: Muito Além do Cidadão Kane". Mostra que não é de hoje que a Rede Globo faz o que quer com informações, imagens e sons.

As vítimas dos atentados de 11 de setembro de 2001 são feitas de papel."O tapete cor de poeira de dentro do avião. A lembrança do branco de uma página"...

O clichê: "quando não é com a gente,né? Pimenta nos olhos dos outros é refresco".

Falta, eu acho, as mesmas operações lógicas espontâneas e simples de pensamento necessárias para que sejamos mais compreensivos com a diferença, mais solidários com os distantes e menos inconseqüentes em relação a atos que possam prejudicar o planeta e toda a vida que há sobre ele.

Síria Mapurunga disse...

Se o gesto do tal assessor fosse alguma novidade pro país, até apoiaria a exposição na mídia, mas como sei que se trata de postura antiga e que em nada acrescenta na tomada de posição da sociedade brasileira, também me indigno, Sávio, com tanta falta do que fazer. São atitudes assim mesmo que atestam a nossa preguiça contestatória de "mudar o rumo das coisas".

Arrisco a dizer que a substância de que o homem é feito não tem mais nada de humano.

Sávio Mota disse...

Mais nada de humano!? Pode ser; mas antes fosse alguma coisa de natural. Não - o homem virou artificial, algo sintético, inodoro... Talvez só as artes e os esportes nos salvem dessa realidade confusa... mas até o esporte precisa usar faixas de luto; até as músicas precisam incorporar em suas letras o abismo quase sem protesto de nossos dias...

Lembro-me bem daquelas pessoas se atirando de inúmeros andares acima no velho WTC. No início pareciam papel, como um jornal em queda livre à frente das janelas. Até se perderem na nuvem de pó que se levantava sem que uma única folha se desprendesse...