segunda-feira, 17 de março de 2008

O Mérito de Maquiavel

Diz-se do Brasil que é um país sem memória. Conta-se ainda que a história é contada pelos detentores do poder, permeada das perspectivas ideológicas que os apetecem. Pois bem: a memória do Brasil é curta não apenas na cabeça das pessoas, mas ainda na preservação de arquivos e documentos - o que é decerto mais grave - e, quando sobra alguma coisa para contar, revelam apenas um pedaço microscópico de um universo de possibilidades tão vasto (ou mais) quanto o possível de se imaginar.

Mas pergunto-vos, meus amigos: e se tivéssemos mais lembranças, teríamos boas histórias para contar!? Falo de boas lembranças em níveis para além dos familiares: conquistas coletivas, sociais, políticas. A História, ciência com agá maiúsculo, essa não pode reclamar muito do passado, apenas estudá-lo, relatá-lo, aprofundá-lo. Mas é ela mesma quem nos propõe a tessitura do futuro através do presente!

Se hoje não temos lembranças de ontem, meus amigos, a História nos conclama à feitura da lembrança de amanhã.



Tomemos, pois, a questão do mérito de Maquiavel: a grande "sacada" do filósofo florentino em "O príncipe" foi, segundo boa parte dos seus críticos, a de relatar a política tal qual ela é, e não como deveria ser - "vício" de tantos outros filósofos da política. Teria, pois, afastado toda sorte de idealização e proselitismo para desvelar as entranhas de como a política realmente funcionava.

Ou funciona: estará aí o erro dos politicistas (políticos, analistas, cientistas e jornalistas políticos) de hoje? Maquiavel deixou de ser uma profunda análise da política de seu tempo e lugar para tornar-se uma cartilha pela qual se pautam muitos dessas figuras públicas. Ganhou até adjetivo e advérbio! À sombra do epitáfio de Maquiavel se abrigam covardes e facínoras da História, deixando a política do jeito que ela é; conservadora, estacionária, reacionária.

Não será um absurdo que o livro, dos idos de 1513, permaneça, por ironia dos tempos, como estrela-guia ideológica de políticos a esquerda e à direita!? Ou, se preferirem chamar-me de "jovem e rebelde" (como chamariam a Rômulo Justa sobre Descartes*), não seria muito mais radical e ultrajante contestar um paradigma de meio milênio do que aquele, recém-nascido na cuca fundida de nossos pais? Não serão dessa perspectiva as recentes gerações mais próximas e vitimadas por aquela ideologia que caracteriza o pensamento moderno (mesmo a mais de duzentos anos do fim da Era Moderna)?

Que o mérito de Maquiavel caiba a ele, e só ele, fechado no seu século XVI.

E que nós tenhamos coragem de nos apropriar de nosso tempo e espaço.

9 comentários:

George Facundo disse...

pôxa sávio, vc toca em vários pontos dos quais cada um mereceria um comentario quilométrico...

pois muito bem, vou fazer o seguinte... vou ler e reler o seu texto, e sempre colocar algo que eu não coloquei devido uma possivel falta de observação...

o que me falou esse texto nesta minha primeira leitura foi sua critica a questão de que os "pensadores" ficam apenas na reflexão em cima de conceitos que seriam apenas "ideias" e não uma reflexão fria e crua do que seria a relidade... e se eu entendi bem vc, concordo plenamente... acho que o grande mal de nossa geração "pensante" é uma escravidão à forma de sempre desenvolver uma "retórica ". e apenas a retórica hipocrita, nos invenenando com ideais utópicos... pobre de nós homo sapiens sapiens pretensus politicus...

hehehehehe

cara, lendo meu comentario pude ver que talvez não tenha conseguido captar o espirito da coisa... se eu viajei na maionese me avise por favor!!!!

Patricia M. disse...

.

Acho que tu talvez tenha escorregado um pouquinho, Facundo! hihih

Mas isso só o autor pode dizer, claro. Só admito essa possibilidade pq entendi algo diferente do que vc entendeu.

São muitos assuntos interessantes, realmente.

Bem, pelo que entendi, falta é um pouco de utopia mesmo. É muito cômodo denunciar a realidade e manter toda a engrenagem que a faz continuar como sempre foi.

"A politica é assim mesmo"! Pro inferno qualquer resolução baseada na política como ela realmente é!
Não percebem todos os erros e lacunas da realidade?

Insistir em um determinado tipo de política pq "é assim mesmo" é negar toda a capacidade humana de criar, transformar, reinventar,entre outras coisas.

Queria mais era que chegassem com uma política diferente, sem a mínima preocupação em dançar conforme a música, mas pensando em tocar canções novas, ensaiar outros passos por intermédio de ouvidos mais atentos à harmonia e não esses ouvidos viciados no mesmo disco furado.

p.s.: filosofia de boteco, né? desculpem as figuras de linguagem, mas eu sou visual demais, então tento ilustrar e fazer metáfora de tudo mesmo. Sou prolixa tb, mas isso é menos frequente =P

*Joy* disse...

A propósito de Maquiavel, Quintana

Provavelmente, este foi o texto mais lido por mim neste blog. Li, reli e, definitivamente, não gostei do conteúdo. Poderia citar vários pontos, porém tenho preguiça e, também, não quero me tornar chata em demasia. Vou me deter ao fato mais questionável: se memória curta é grave, como pedir para encarcerar um escritor em uma convenção chamada século? Isso é o mesmo que dizer: lembremo-nos e reconheçamos o mérito de Maquiavel. No entanto, esqueçamo-nos dele no dia-a-dia. Ou seja, não o citemos, não lembremos!
Contradições à parte, reconheço a boa intenção do autor: é preciso olhar pra frente e construir uma política nova, com idéias nossas. (Se é que existem idéias nossas).
Para a construção desta política nova, enxergo caminho inverso ao do dono do post: Maquiavel precisa, cada vez mais, ser resgatado do século XVI. Pelo simples fato de que a estrutura política permanece semelhante. E permanece, não pela leitura, mas pela falta dela. Quantos aqui terão lido, pelo menos, “O Príncipe”?
É este o grande problema: com exceções, apenas os políticos profissionais se preocupam em ler os clássicos políticos. Tivesse o povo se apropriado dessas leituras, quiçá algo pudesse ter sido alterado. É bem o que disse Mário Quintana:
“Os livros não mudam o mundo. Os livros só mudam as pessoas. As pessoas é que mudam o mundo.”

Sávio Mota disse...

Convenções existem para serem úteis, não simplesmente para serem desprezadas. No caso, posiciona um contexto que mudou, sim, ao longo do tempo. Há outras motivações, outras idéias, concepções e decepções sobre o mundo. Se a estrutura política é desde então praticamente a mesma - e nisso eu concordo - não se pode dizer o mesmo, absolutamente, de todo o cenário político que, em última instância, é todo o cenário humano.

Livros podem mudar as pessoas, não necessariamente mudam. Se fosse o caso de a obra de Maquiavel ser assim de uma extraordinariedade extemporânea, teria mudado o comportamento de seus leitores para o que proponho, mas são justamente estes, os políticos profissionais, a quem o livro tem simplesmente servido de manual.

Arrisco-me grandemente a cometer uma heresia, mas o que falta ao "povo" não é somente (e talvez bem menos) ler os clássicos; antes disso, ele os produz. Tomado de um modo geral, esse povo, mesmo sem ler, consegue identificar com igual ou maior profundidade os termos em que a política se dá na realidade. Falta, isso sim, maior intercâmbio social, correspondência e sentimento de coletividade; meios que proporcionem maior consciência (e não conscientização) política e humana.

A propósito, não escrevi uma obra em contestação a Maquiavel; mas um post em contestação ao mérito que se lhe atribui e o uso de sua obra a partir de então. Nessas condições, pouco importa se as pessoas que comentam aqui leram ou não a referida obra; basta entender o contexto em que se colocam essas questões.

Se, para mudar o mundo como se precisa, esperarmos pela intelectualização massificada (o que é, afinal, uma contradição!), estamos fritos...

*Joy* disse...

1. "Convenções existem para serem úteis, não simplesmente para serem desprezadas."

É fato. A utilidade de uma convenção chamada Século, neste caso, é entender o contexto histórico-social de uma obra, não encarcerá-la.

2. Quem se beneficia da "má-política" não tem interesse em mudá-la. O livro de Maquiavel serve pra desvendar ponto por ponto muitas demagogias e estratégias usadas por quem está no poder. Para eles, quanto menos leitura as pessoas tenham/tiverem, melhor.

3. "Pouco importa se as pessoas que comentam aqui leram ou não a referida obra; basta entender o contexto em que se colocam essas questões."

Se alguém quiser comentar só o post, pouco importa, concordo. Pra quem quiser ir além das reclamações da permanência das estruturas é bom que leia Maquiavel. Quem quiser mudar algo no mundo é bom que leia também Platão, Aristóteles, Cícero, sem esquecer dos modernos e contemporâneos.

4. "Se, para mudar o mundo como se precisa, esperarmos pela intelectualização massificada..."

Como disse Darcy Ribeiro, é extraordinária a façanha educacional da nossa classe dominante. Chegamos ao ponto de acreditar que leitura é coisa de intelectual. Mas não foi isso que eu disse. Acredito é no clichê contemporâneo: revolução pela educação, a qual, eu creio, não pode acontecer sem auxílio dos livros.

Vou rememorar aqui uma história interessante, julgo que do fim do período colonial de nossa pátria:

"Em meados do século retrasado, a nobre vila de Itapetininga, ilustre cidade de São Paulo, fez um pedido veemente a Pedro Dois: queria uma escola de primeira letras. E a queria com fervor, porque ali - argumentava - havia vários homens bons, paulista de quatro e até de quarenta costados, e nenhum deles podia servir na Câmara Municipal, porque não sabiam assinar o nome. Queria uma escola de alfabetização para fazer vereador, não uma escola para ensinar todo o povo a ler, escrever e contar. Sabiamente, uma vila quer e pede escola, deseja capacitar sua classe dominante sem nenhuma idéia de generalizar a educação."

Porém, eu não precisava ter ido tão longe. A classe dominante soube em todas as épocas o poder dos livros. Podemos recordar a ditadura de Hitler, de Stálin e até o período de ditadura militar no Brasil. Para manter a ordem (as estruturas), os livros, coitados, iam direto para a fogueira.

Eu poderia reiterar a citação de Quintana, mas acho que ela já aparece aqui, apesar de não ser mencionada novamente. O sábio poeta, no entanto, merece outra lembrança:

"Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não lêem."

Sávio Mota disse...

Veja você, cara Alice, que curioso: numa segunda análise, suas palavras vem mais ao encontro do que de encontro às minhas. O que todos nós (eu, George, Paula e você) discorremos se complementa, embora partindo de pontos diferentes. Fica evidente que o emprego de termos como "leitura", "educação", "utopia", "intelectualidade" traz a reboque uma profunda crise conceitual que é senão a marca da contemporaneidade. Para minha satisfação, empreendemos a ferramenta que, a meu ver, é provavelmente a única para resolver essa crise: o diálogo. Nesse empreendimento, inventariamos possibilidades plurais de interpretação que, trabalhadas, vão nos dando novos caminhos e respostas, resolvendo gradativamente as contradições e agregando as proximidades.

A) Encarceramento: para mim, a palavra já é um encarceramento, senão a morte do sentido. Um texto ou livro, então, é uma coleção de sentidos presos ou mortos, com as letras, palavras e expressões como soldados, pelotões e divisões metidas em prisões ou cemitérios de guerra. Isso não o torna inválido ou desprezível; longe disso. Mas o faz partícipe desse contexto e exige de nós um esforço de (re)conhecimento histórico muito difícil de atingir - portanto, que não deve ser incautamente assimilado. É esse cuidado, largamente ignorado não apenas na obra do florentino, o que proponho. Justamente por acreditar no diálogo como progresso que critico muito da tomada do livro (seja um específico, seja todos os livros) como o sumo da sabedoria e da razão. Minha crítica é sobre o comportamento das pessoas em relação aos livros, não dos livros em si; e por isso dispensa, a priori, o conhecimento das obras. Falo, pois, do que chamo "intelectualismo".

B) Intelectualismo: trata-se de um culto ao intelecto que, por si só, já perde muito de (quase toda) sua criticidade. Aí, realmente, leitura é coisa de intelectual: há por esse lado um privilégio e, do outro, a repulsa pelo binômio leitura/intelectualidade; mas, a meu ver, em poucas pessoas dos dois lados (e não só do último) sobra alguma criticidade mais profunda. Mais do que isso, a leitura é coisa de intelectual porquê a realidade aponta para isso hoje; e, mais uma vez, é pelo diálogo de várias origens que se pode mudar essa realidade, transformando a idéia que se tem sobre o ato de ler. Nessa diversidade origens estão contextos sócio-históricos, culturais, étnicos; mas também - porque não!? - raízes significativas do mundo mais ligadas às imagens e ao som, principalmente. E isso nos remete à reformulação da idéia de leitura.

C) Conceito de leitura: afinal, leitura é apenas o ato de decodificar palavras impressas ou a ação mais abrangente de observar e interpretar a realidade? Quando critico a leitura, falo da primeira idéia; mas acredito mesmo é nesse conceito mais amplo de leitura. Acho que nesse contexto somos ainda mais felizes em interpretar a citação de Quintana (ainda que porventura não tenha sido a intenção do autor da frase). Sei que não sugeriu que o fiz, mas é preciso ratificar aqui que em nenhum momento fiz apologia ao abandono da leitura ou sugeri que se queimassem livros - apenas observei o aspecto viciado do intelectualismo. Afinal é minha leitura da realidade e a disponho para ser discutida e melhorada através do diálogo. Admito que esse debate me fez perceber alguns pontos carentes de mais fundamentação em meu discurso; mas estou agora mais convicto dessas idéias do que quando escrevi. E devo também dizer que me incomodo com um aspecto de suas declarações: qual o limite entre sugestão e imposição?

D) Sugestão ou imposição: a meu ver, as únicas áreas do conhecimento que demandam realmente uma formação intelectual dirigida são as profissões técnicas, as ciências exatas e as naturais. De resto, a formação intelectual humana e moral não deve ser autoritariamente imposta, pois me soa extremamente comprometedor do próprio juízo crítico. Como ser crítico partindo da premissa de aceitação dessa imposição? Se você apenas sugere a leitura desses autores para compreender as questões políticas, agradeço muito a contribuição; mas se acredita plenamente na inerência dessa necessidade, é um ponto sobre o qual ainda divergimos profundamente.

Em suma, o que quero dizer com tudo isso é que o livro não é nem deve ser mais do que um instrumento para o ser humano chegar em outros espaços do conhecimento e da ação. Não deve se tornar o fundamento da vida humana: pés de papel são até mais frágeis que os de barro. E a tinta que serviria de seiva às palavras, é, quando mal manipulada, tóxica.

*Joy* disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
*Joy* disse...

Não julgo que tenha sido um problema de conceitos. Foi de visão mesmo. Livro pra mim não é coleção de sentidos presos e mortos. Ao contrário. São tão vivos que dialogam uns com os outros e têm um incrível poder de estabelecer diálogos entre escritos antigos e contemporâneos.
Quanto ao fato de eu ter feito uma imposição ou sugestão sobre a leitura, basta reler o que eu escrevi no tópico 3. Auto-explicativo.
Em relação à falta de criticidade nas leituras, só vejo uma saída: mais leitura. Cápsulas diárias de leituras e discussões sobre isso.

Pés de papel mais frágeis que os de barro?

"Os livros são objetos transcendentes!
...São como a radiação de um corpo negro,
Apontando pra a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo."

Vou para a postagem de cima =***

Sávio Mota disse...

Um longo caminho, mas finalmente, creio, chegamos aos pontos de convergência e divergência momentaneamente indissolúveis; exatamente onde queria.

O curioso (e ratificante) é que adorei ler os debates por comentários!